Língua Presa · Música · Traduções

A Verdadeira História de “Local Boy In The Photograph”, do Stereophonics

(Tradução livre desse texto de 17 de março de 2023. Um adendo antes: a música em questão faz parte do primeiro disco do Stereophonics, Words Get Around, lançado em 1997. Esse eu tenho na coleção, mas ouvi bem pouco.)

A Verdadeira História de “Local Boy In The Photograph”, dos Stereophonics

Apesar de “Local Boy In The Photograph” ter quase 25 anos, a canção ainda é uma das favoritas dos fãs do Stereophonics.

Lançada em 1997 no debut da banda, Words Get Around, a canção, escrita por Kelly Jones (vocalista e líder do grupo) conta a trágica história de um conhecido dos membros fundadores da banda: Kelly Jones, Richard Jones e Stuart Cable.

Como a maioria das canções desse álbum, essa também foi inspirada por eventos reais que aconteceram na região onde viviam.

Foi o trágico suicídio do “garoto local” Paul David Boggis – causado por um trem que viajava entre Cwmbach and Aberdare – que inspirou esse single em particular.

Ao falar no programa de televisão Songbook, em 2011, Kelly Jones explicou: “Eu costumava jogar futebol ali na região e tinha uma criança que também jogava por lá. Eu o conhecia bem – era uma criança legal e atraente, dessas que a gente olha e pensa ‘ele tem tudo’.”

“Alguns anos depois, descobrimos que ele se jogou na frente de um trem. Lemos isso em um jornal local e ficamos um pouco chocados. Tinha uma foto dele fumando – acho que era um baseado. Dessa foto que o jornal usou é que surgiu o ‘garoto local’ na fotografia (nome da canção traduzido).”

Ele acrescenta: “Nunca conhecera alguém da nossa idade que tinha feito isso, de ter encerrado a própria vida e ninguém saber o motivo. E quando se tem 18, 19 anos, você é muito ingênuo e acaba colocando tudo pra fora.”

“A música foi mais uma celebração de sua vida do que sobre sua morte, foi sobre o garoto bebendo sentado no banco, memórias das estações, muitas lembranças nostálgicas, e foi assim que descobri que uma composição mais descritiva é o que faz a pessoas realmente pararem para ouvir.”

“E todos os amigos trazem flores
Sentam nos bancos e bebem por horas
Falam sobre a última vez que o viram
O garoto local na fotografia”

“Local Boy In The Photograph” já tem vinte e cinco anos, mas graças à brilhante narrativa de Kelly Jones, a canção continua tão pertinente e atual nos dias de hoje.

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“Ela salvou o Oasis” – a mulher que inspirou “Talk Tonight” foi encontrada

Tradução livre de um texto de 2016, sobre uma curiosa história que descobri há pouco tempo. Link original aqui.

“Ele queria acabar com a banda… Eu não ia deixar aquilo acontecer na minha frente.”

Finalmente encontraram a mulher que, segundo dizem, ajudou a “salvar o Oasis” ao inspirar Noel Gallagher a escrever “Talk Tonight”.

Como todos que assistiram o documentário Supersonic (de Mat Whitecross, 2016) irão lembrar, Noel ficou sumido depois do lendário e desastroso show no Whisky A Go Go, em 1994, ameaçando acabar com a banda de vez. Ele voou até São Francisco para passar um tempo com uma garota que estava conhecendo. Ela o inspirou a escrever “Talk Tonight”, levando-o a voltar ao Oasis. Tal canção foi lançada como lado b de “Some Might Say” em 1995.

Em Supersonic, ele contou que não se lembrava do nome ou do rosto dela, porém, uma mulher chamada Melissa Lim conversou recentemente com o jornal San Francisco Chronicle sobre aquele período em que ela e Noel passaram juntos.

“Nunca estive em um backstage antes, então o perguntei ‘Onde vai ser a festa depois?’ e ele ‘Que festa? Posso sair com você hoje à noite?'”, ela conta sobre o encontro dos dois. “Ele estava muito irritado”, ela conta sobre o fatídico dia em que Noel apareceu em seu apartamento, em Nob Hill. “Eu o recebi, fiz uma comida e tentei acalmá-lo. Ele queria acabar com a banda.”

E continua: “Fomos ao Huntington Park para ele espairecer. Ouvimos música e fomos comprar uns discos. São Francisco tem a fama de ser o lugar onde as bandas vêm para morrer, como a The Band e os Sex Pistols. Eu não ia deixar aquilo acontecer na minha frente. Falei ‘Você não pode sair, você está à beira de algo grande!'”

Sobre uma conversa que os dois tiveram sobre manter a relação à longa distância, Lim alega ter dito a Noel: “Tudo bem, não olharei para trás com rancor (uma brincadeira com a música ‘Don’t Look Back in Anger’, do Oasis). Sei que somos apenas amigos”.

Quando perguntada sobre Noel não se lembrar dela, ela diz: “Keith Richards consegue se lembrar do vendedor de leite de quando ele tinha oito anos. Não sei em relação ao Noel, e está tudo bem. Fui parte de algo que tocou várias pessoas, isso é o suficiente.”

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Encontre Os Outros

Tradução livre da citação de Timothy Leary, “Encontre Os Outros”:

“Admita. Você não é como eles. Nem perto disso. Você pode, ocasionalmente, se vestir como eles, assistir os mesmos programas idiotas na televisão como eles, talvez até comer as mesmas comidas de fast food.

Mas parece que quanto mais você tenta se encaixar, mais você se sente um estranho, assistindo as “pessoas normais” em suas existências automáticas.

Para cada vez que você diz frases convencionais como ‘tenha um bom dia’ ou ‘o tempo está péssimo hoje, hein?’, você anseia por dentro, querendo dizer coisas proibidas como ‘me diga algo que te faz chorar’ ou ‘o que você pensa sobre o déjà vu?’.

Veja, você quer conversar com aquela mulher no elevador. Mas e se ela e o careca que passa pela sua sala no trabalho estão pensando a mesma coisa? Quem sabe o que você pode aprender por arriscar e ter uma conversa com um estranho? Todo mundo carrega uma peça do quebra-cabeça. Ninguém entra em sua vida por mera coincidência.

Acredite em seus instintos.
Faça o inesperado.
Ache os outros.”

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CAN – Disco “Live in Stuttgart 1975” Exemplifica a Espontaneidade e Impacto do Lendário Grupo Alemão

(Tradução livre do artigo de Daniel Dylan Wray, postado no blog do Bandcamp em onze de junho de 2021.)

“Com o CAN, havia sempre uma sensação de algo inacabado ou em construção, mas não perfeitamente polido, ainda mais nos shows ao vivo”, diz Irmin Schmidt, o único membro fundador remanescente da banda alemã de rock experimental.

Schmidt, 83 anos, está refletindo sobre o legado da banda, enquanto uma nova série de discos ao vivo é lançada, sendo o primeiro o Live In Stuttgart 1975. Composto por cinco faixas, com cada uma variando entre nove e trinta e cinco minutos, o álbum captura sete anos de existência da banda – já tendo passado dois vocalistas, Malcolm Mooney e Damo Suzuki, e agora operando como uma unidade instrumental feroz e hipnótica.

Misturando ritmos jazzísticos com riffs explosivos de rock psicodélico e grooves infinitos e imprevisíveis, a banda – que sempre tocou sets improvisados – tenta aproveitar tanto o caos quanto a coesão do álbum. “Quando ouço gravações antigas, se são boas, consigo ouvi-las como se tivessem sido criadas por outra pessoa”, diz Schmidt. “Não há nenhum tipo de sentimento ou nostalgia. Embora se eu ouvir algo que não deu certo e não for bom, sinto algo desconfortável, porque você pensa: ‘que merda’, e às vezes, se for muito ruim, rola uma vergonha.”

Não há nenhuma vergonha a ser descoberta em Live In Stuttgart 1975, ainda bem. É um documento gravado que captura de forma perfeita a dicotomia que tanto caracterizou o CAN, uma banda que poderia soar muito precisa ou amplamente expansiva, ambas com o mesmo fôlego. Vinda de Colônia e formada pelo quarteto principal Schmidt, Holger Czukay, Michael Karoli e Jaki Liebezeit, o grupo tinha uma vasta experiência. Schmidt estudou composição na Rheinische Musikschule, assim como Czukay, enquanto Liebezeit estava no free jazz europeu e Karoli era um multi-instrumentista que havia tocado em um monte de bandas antes. “Não éramos apenas um grupo de amigos”, diz Schmidt. “Alguns de nós nem se conhecia até o momento que juntei esse pessoal. Minha ideia para o grupo era que esses membros deveriam vir de tradições diferentes. Queríamos fazer um grupo onde todas essas partes pudessem existir por si mesmas.”

Não eram apenas as diversas bagagens musicais que fizeram do CAN um grupo diferenciado no início, mas a sua atitude. Eles tomaram um antigo cinema chamado Inner Space Studio e criaram seu próprio mundo para desaparecer. “A Alemanha já estava um pouco longe do desenvolvimento que acontecia em lugares como a Grã-Bretanha e América”, diz Schmidt. “Então havia uma sensação de isolamento, e também um certo senso de estar isolado de outros grupos alemães, porque uma banda pode estar em Berlim, outra em Hamburgo, mais outra em Munique. Não havia uma capital como Londres, onde todo mundo na cena se conhecia. O efeito que isso teve foi que nos tornamos eremitas, e isso se tornou algo bastante original. Não fomos expostos à uma influência diária de outras tendências, e isso foi algo consciente – não queríamos seguir nenhuma tendência.”

Durante a trajetória original da banda, entre 1968 e 1979, foram lançados onze álbuns. Mesmo que todos possuam momentos mágicos – do épico de vinte minutos “You Doo Right” (reduzidos de uma improvisação de seis horas) em seu disco de estreia ao inesperado hit disco “I Want More” (do álbum Flow Motion) – foram os quatro discos em sequência: Tago Mago, Ege Bamyasi, Future Days e Soon Over Babaluma que tornaram a banda uma referência em experimentação e inovação para muitos grupos. Embora classificados como uma banda de Krautrock junto com o Neu! e o Kraftwerk, esses grupos tinham poucas semelhanças em comum, a não ser a determinação em romper novos caminhos sonoros. O CAN fundiu rock, jazz avant-garde e psicodelia, sustentando-os em marcas suntuosas, criando um som que continua distinto ao ponto de ser inimitável.

Apesar do toque livre e despretensioso da banda, que os levou a evitar regras pré-estabelecidas, eles assumiram essa mente aberta com uma fortitude rigorosa e uma leal ética de trabalho, muitas vezes ensaiando por doze horas diárias. “Era tudo muito espontâneo no estúdio”, relembra Schmidt. “Ninguém entrava e dizia: tenho uma ideia para uma música. Isso não existia. Mas após um tempo, um groove ou um riff poderiam surgir e seriam o caminho para construir uma peça. Um certo riff pode te trazer ideias para centenas de possibilidades, mas ele estabelece uma regra. Então, quando tocávamos no estúdio, estávamos atrás da perfeição dessas regras. Era comum que aperfeiçoássemos um certo groove repetindo-o e repetindo-o, talvez por horas ou por dias, até termos a sensação de ‘é isso'”.

Esse processo era a arte em si tanto quanto, senão mais, do que o produto final, sugere Schmidt. “Você pode passar anos assim. Um dia você tem que dizer ‘ok, já é o bastante.’ Isso às vezes gerava uma discussão, porque Jaki era sempre convencido de que poderia melhorar. Ele gostaria de continuar. Mas no processo de aperfeiçoamento, isso poderia virar algo totalmente diferente. Você precisa ter o espírito do processo de criação. É algo bem misterioso, quando digo que não está realmente pronto. A essência dessa música que fizemos é sobre como existem milhares de possibilidades, e o caminho que você decide pegar não é para resultar em uma peça composta e perfeita, é sobre o processo de transformar isso tudo uma peça.”

O casamento da espontaneidade com a execução afiada, combinado com uma inovadora edição de fitas para condensar as sessões de gravação, resultou em alguns dos trabalhos mais surpreendentes do Can. “Faixas como ‘Future Days’ ou ‘Halleluwah’ são fortemente editadas a partir de várias horas de gravação”, diz Schmidt. “Embora, inicialmente, o Jaki sentisse que se poderia destruir o groove na edição, Holger e eu o educamos com as técnicas da Stockhausen, que editava fragmentos de milhares de pequenos trechos. Jaki fez suas pazes com a edição e crescemos como uma banda.”

Esse senso de fluidez continuou até o palco, com seus shows improvisados. Eles até brincavam com trechos das músicas favoritas do público, mas os enterravam profundamente com seus grooves pulsantes. Um show com os maiores sucessos nunca fora cogitado e era visto visto como um conceito absurdo; ao invés disso, as apresentações ao vivo existiam como uma extensão do processo criativo. “Íamos ao palco sem faixas prontas e criávamos músicas na hora, tornando tudo tão cheio de incertezas e fragmentos. Esse é o mistério da coisa, elas (as canções) foram criadas no momento de tocá-las. Claro, naquela hora você não pode ser um perfeccionista – a espontaneidade exclui a perfeição. Para mim, esse é o elemento de toda grande arte do século 20 – essa fatalidade iminente que a torna, de certa forma, inacabada.”

Image courtesy of Spoon.

E será que a plateia sempre tolerava os shows ao vivo que duravam por horas, e até por dois sets? “Eles percebiam logo de cara que estavam participando da criação de algo, de forma espontânea”, diz Schmidt. “Isso só é possível de se alcançar se a reação do público for de inclusão. Então, na maioria das vezes, mesmo que não funcionasse e não nos conectássemos, eles não agiam de forma agressiva ou com vaias. Eles tentavam ajudar no processo. Mesmo que o primeiro set fosse terrível, eles sempre estavam lá no segundo.”

O legado, impacto e influencia do CAN continua incalculável, moldando inúmeros artistas de múltiplas décadas – de Brian Eno ao The Fall, do Primal Scream ao LCD Soundsystem – mas como Schmidt enxerga isso? Ele se sente orgulhoso? “Orgulho não é a palavra certa”, diz ele calmamente. “Se você lança um trabalho artístico no mundo e ele existe cinquenta anos depois, é satisfatório. Significa que o que você fez foi válido. Por outro lado, existe um senso de que é algo natural, pois tive uma educação clássica. Desde cedo tenho ouvido músicas com centenas de anos de existência. Isso deve durar. Se for bom o bastante, dura.”

Língua Presa · Música · Traduções

Amity

(Tradução livre de um trecho do texto “Song of the Day #1,885: ‘Amity’ – Elliott Smith“.)

Elliott: É uma canção realmente desprotegida – Escrevi a letra em alguns minutos e não a mudei. Gosto de como ela soa, embora não seja uma canção especialmente profunda.

Repórter: Não, de jeito nenhum, eu amo a sensação dela. Estava a dançando em meu porão como Uma Thurman em “Pulp Fiction”.

Elliott: (risos) É que, não sei… Apenas uma grande canção de rock. É bem simples. Não é tanto sobre as palavras em si, mas mais como a coisa toda soa. Alguns amigos disseram que ela parece uma tentativa de conseguir algo romântico com alguém, e não era essa a intenção. Era para ser “você é realmente uma ótima companhia e gosto muito de você por isso, mas estou muito, muito deprimido”, mas não sei se ela parece com isso. Quando digo “pronto para ir”, era para indicar que estava cansado de viver.

Repórter: An? Tipo, pronto para ir embora desse mundo?

Elliott: É, desculpe por tornar a música triste para você agora. (Ambos riem)

Repórter: Tudo bem, vou continuar ouvindo. Eu também pensei que existiam elementos românticos nessa música. Fiquei pensando se a palavra “amity” era uma brincadeira com a palavra francesa “amite” (amizade).

Elliott: Na verdade, é uma pessoa que conheço.

Repórter: Minha parte favorita é quando você canta “’cause you laugh and talk/and ’cause you make my world rock!” (porque você ri e conversa/e faz eu me sentir muito bem). É uma quebra no estilo que você costuma escrever. Gostei do aspecto despreocupado disso. Lembro de pensar em como a maioria dos compositores não usariam essas palavras e as descartariam. Se mais alguém escrevesse aquilo, eu teria pensado “que babaca!”.

Elliott: Sim. (risos) É isso.

Repórter: Mas você é inteligente e suas letras são tão boas, que senti que você foi se soltando de propósito e se divertindo com a canção.

Elliott: Foi bem simples. Eu estava dizendo “realmente gosto de você e é muito bom sair com alguém que é feliz e fácil de lidar, mas eu não me sinto assim e não posso ficar com você.”

Quarta Parede · Traduções

Akira Kurosawa sobre Roteiro

“O que mais me estressa nos diretores aspirantes que batem à minha porta é isso:

‘É muito caro fazer um filme nos dias de hoje e é difícil virar um diretor.’

É preciso aprender e experimentar várias coisas para se tornar um diretor e não é tão fácil de se conseguir. Mas se você realmente quer fazer filmes, então escreva roteiros. Tudo o que você precisa é papel e lápis. Somente ao escrever roteiros se aprende aspectos da estrutura do filme e o que é o cinema.

Isso é o que os digo, mas eles ainda assim, não escrevem. Acham difícil demais. E é. Escrever roteiros é um trabalho árduo. Porém… Balzac disse para escritores e também para novelistas, que o mais essencial e necessário é a paciência ao encarar a chatice de escrever uma palavra por vez. Essa é a primeira exigência para qualquer escritor. Quando você analisa a obra de Balzac com isso em mente, é ainda mais impressionante, porque ele produziu um volume de trabalhos que não seríamos capazes de terminar de ler durante nossas vidas. Sabe como ele os escreveu? É interessante. Ele os rabiscava e enviava para a impressão logo em seguida. Uma página era impressa em uma folha de papel enorme. Quando recebia de volta as páginas impressas, ele fazia revisões na margem, até restar bem pouco do escrito original. Depois, enviava essas revisões para a impressão. É uma ótima forma de trabalhar, apesar de ser meio difícil para o tipógrafo. Ele era capaz de produzir bastante por causa desse método. Esse pode até ter sido o ingrediente, mas o mais essencial foi ter a paciência de escrever uma palavra por vez até chegar ao tamanho que queria.”

Crônicas · Música · Traduções

Alguns Centavos Por Amor

(Texto escrito para o blog da Immagine que foi ao ar hoje. Link aqui. Para melhor entendimento, o link da tradução citada no texto está aqui.)

Há alguns anos atrás, talvez uns oito ou nove, conheci um blog que foi fundamental na construção do meu gosto musical. Se chamava “Amor Louco Br” e era voltado (basicamente) ao rock independente dos anos 80 e 90. Não importa se a banda era bem conhecida ou se era uma daquelas pérolas obscuras que passam despercebidas pela atenção do público. Provavelmente, teria algum registro disponível para ouvirmos.

Naquele gigantesco acervo digital, conheci artistas que se tornaram referências máximas para mim, como os Pixies, Nick Cave e o Sonic Youth, bem como outros artistas renomados. Também conheci artistas que, infelizmente, acabaram se tornando obscuros em meio a esse vasto universo musical. Dentre essa infinidade de trabalhos, lembro-me bem de ficar interessado em “Love 15”, único disco da extinta banda de Detroit, Majesty Crush.

Quando ouvi pela primeira vez, foi uma viagem sonora daquelas que demoramos a voltar ao estado normal. Naquele dia, fui dormir ansioso, pois queria continuar ouvindo aquelas músicas novamente e novamente e novamente. Sem parar. A voz calma de David Stroughter contrasta com os instrumentos que, ao fundo, criam toda a atmosfera do disco. As guitarras atuam como camadas/texturas que permitem um destaque maior do baixo e da bateria. Um típico álbum de shoegaze, que ultrapassa esse limite e vai ainda mais além.

Talvez pela minha inquieta vontade de conhecer cada vez mais e mais novos artistas, “Love 15” acabou desaparecendo das minhas audições. Por fim, fiquei anos sem ouvi-lo. Para ser bem sincero, até me esqueci da existência dele e do “Majesty Crush”. Porém, a espiral do universo fez questão de torná-lo presente de novo nas minhas playlists.

Sem saber o motivo, acordei com “Penny For Love” na cabeça, como se fosse uma continuação daquele sono de anos antes, que mencionei acima. E ela não parava um só minuto de tocar na minha rádio interna. Desde o despertar até o trajeto para o trabalho, seu refrão era repetido incessantemente em minha mente, como uma súplica, me implorando para ouvi-la novamente, depois de tanto tempo. E após realizar o tal desejo, era como se eu nunca tivesse esquecido sua existência.

Resolvi checar novamente informações sobre a banda pela internet, com a expectativa de encontrar algo novo, diferente da época em que a conheci, onde nem as letras das músicas estavam disponíveis. O cenário no Google era o mesmo, com informações escassas, mas com uma notícia a mais que se destacava. Porém, ela não foi nada animadora. David Stroughter, a mente principal por trás do projeto, havia falecido quase um ano antes da minha busca.

Pesquisei a fundo toda a situação que envolveu a sua morte e encontrei um artigo de despedida escrito pelo ex-baixista da banda, Hobey Echlin. Até fiz uma tradução do mesmo, para me aprofundar ainda mais na história desse enigma da música underground.

O Majesty Crush foi um verdadeiro caso de estar no lugar errado na época errada. Fizeram certo sucesso na região de Detroit e até emplacaram uma canção nas rádios. Porém, quando conseguiram lançar um disco por uma gravadora, ela faliu pouco tempo depois, arruinando o sonho dos integrantes, que não mais tiveram forças para manter a banda. David até se manteve ativo, mas sempre à margem da cultura independente.

Esse texto é uma homenagem ao Majesty Crush e, principalmente, a David Stroughter. Uma figura inquieta e brilhante que liderou uma das bandas mais interessantes de sua época. Certamente, sucesso não é sinônimo de qualidade.

Música · Traduções

David Stroughter, 1966-1970: Uma Lembrança

(Tradução que eu fiz do artigo “David Stroughter, 1966-1970: A Remembrance”, escrito por Hobey Echlin e publicado originalmente no MetroTimes, de Detroit, em 6 de fevereiro de 2017. Link aqui.)

PHOTO COURTESY JACK NELSON

Conheci David Stroughter em 1988. Eu estava na banda Spahn Ranch e Dave era amigo do nosso baterista, Odell Nails. Dave veio para cantar uma faixa incomum de dance em que tivemos a idéia de usar uma bateria eletrônica e sintetizadores. “O que você faria se dois leões me atacassem, me rasgando com suas garras?”, ele cantava. Eu estava no chão. Ele soava como Marvin Gaye em “I Want You”, elevando nossa canção post-punk da arte danificada ao romance e martírio em uma mesma linha.

Aqui estava este rapaz criado entre Southfield (subúrbio de Detroit) e a Alemanha, de onde era sua mãe. Ele era o epítome de um enigma post-punk de Detroit do final dos anos 80, um iconoclasta multicultural que cresceu com os sobrinhos e tios da realeza da Motown, que poderia ser ouvido conversando com o Einstürzende Neubaten num alemão fluente no andar de cima da sala Burns, no St. Andrew’s Hall, depois de um show.

Viramos colegas de quarto em Hamtramck (cidade americana localizada no estado de Michigan), onde ele me introduziu às maravilhas do A.R. Kane e Xmal Deutschland, bandas cuja beleza “pegou” as brilhantes canções de ninar do Cocteau Twins e as atirou por uma linha perfeitamente negra, vagamente sinistra, certamente azulada (no caso, uma referência ao blues). Também ouvíamos – e rimos muito sobre – N.W.A. Dave amava os personagens. Para ele, eles eram quase shakespearianos. “Eu os conheço todos e, ao mesmo tempo, mantenho a gema de sua ociosidade”, como o Príncipe Hal diz em Henrique V, parte 1 (peça teatral escrita por Shakespeare).

PHOTO COURTESY JACK NELSON

Depois que os membros do Spahn Ranch tomaram seus caminhos em separado, Dave e Odell formaram o Majesty Crush com Michael Segal, o cínico balconista da loja de discos que havia vendido a Dave os discos do A.R. Kane anos antes. Eu quebrei um galho como baixista. A gente se reunia no porão da casa de Dave em Indian Village (histórico bairro situado na região leste de Detroit). Nossos corações estavam no lugar certo, mesmo que os dedos, em sua maior parte, não estivessem. Tornaríamos-nos, supostamente, algo como o Velvet Underground ou, em minha parte, uma linha de baixo meia-boca do James Jamerson com uma mistureba de Joy Division (culpado pelo baixo, como fora acusado), Can e Motown. Nossa música era simples e espacial, mas as letras e o cantar de Dave eram profundos e sombrios. Era o Marvin Gaye cantando Syd Barrett, cheio de saudade, luxúria e auto-depreciação. Dave era o nosso mistério inocente, completamente inspirado, saudosamente efêmero, perfeitamente visceral, completamente formado. Ele era nossa faísca criativa, nosso presente de fogo.

Mas a estrela que brilha duas vezes mais forte, dura pela metade, parafraseando as palavras de Dr. Tyrell sobre Roy Batty de Blade Runner, porque, realmente, enquanto eu processo o falecimento de Dave e a década que levou a sua súbita e trágica morte, eu preciso de outro herói condenado para me referir.

Entender Dave como pessoa era entender uma vida de oportunidade limitada, oprimida por uma perda profunda. Seu primo foi assassinado durante um assalto a um caixa eletrônico quando morávamos em Hamtramck, levando sua amada tia Otti a voltar para a Alemanha. Mais tarde, o próprio Dave passou um final de semana preso depois de ser falsamente acusado por um assalto armado, simplesmente em virtude de ser um negro de pele clara com um espaço entre seus dentes. Isso não o enrijeceu; isso o inspirou. Na semana seguinte, escrevemos nossa canção mais alegre, “Penny For Love”.

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Mesmo que o Majesty Crush tenha se tornado uma anomalia na era do Grunge e do Rock Alternativo na cena de Detroit, com esses shoegazers multiculturais tocando um gótico-amigável, girando num pop sombrio, Dave estava encontrando sua voz e cantando o seu blues. “Psycho-blues”, como ele rabiscou uma vez em uma folha de papel, com sua escrita rasurada, onde as letras se inclinavam e derrubavam umas sobre as outras. Ele cantava sobre cross-dressing (ato de vestir-se com roupas ou acessórios do sexo oposto), lojas de livros adultos e prostituição em melodias desfalecidas e harmonias em falsete. Mas elas falavam para um estranho e vago prazer que, depois de alguns drinques, pareciam uma epifania, como o flash de nossa secretária eletrônica (isso em 1992, lembre-se) avisando que você tinha uma mensagem quando chegou em casa depois do bar – mesmo que você tivesse checado se havia alguma mensagem duas horas antes.

Dave era um personagem, com certeza. Ele poderia se apresentar com uma roupa de mergulho, ser a vida (e, às vezes, a morte) depois da festa, e até acordar com uma companhia amorosa ou por cima de um lixeiro em Eastern Market (histórico distrito comercial de Detroit). Seus demônios eram reais, mesmo que, lá atrás, eles parecessem cartunescos, e até divertidos. Apesar de sua natureza mercurial, Dave sempre obteve êxito. Ele comprou uma casa em Hamtramck; Preston Long, do Mule, morava no andar de cima. Nós fizemos discos, excursionamos e compartilhamos aqueles momentos idiotas que toda banda tem, viajando pela primeira vez para outra cidade, mesmo que isso significasse ter tocado para a banda de abertura e seus amigos da loja de discos. Uma noite, tocamos no State Theater como parte do clube X da rádio 89X’s. Minha mãe veio nos assistir. Nos bastidores, Dave acendeu um baseado. “O que? Sua mãe sabe que eu fumo”, ele insistiu. Ele estava certo. Conhecê-lo era aceitá-lo.

Mesmo que o Majesty Crush estivesse à margem da cultura independente, nós vivíamos a sua esperança, bem como o seu cinismo. Quando fomos tocar em Nova York pela primeira vez durante o CMJ (festival de música e cinema), dirigindo por St. Market’s Place até o apartamento de nosso amigo em Bowery, Darcy, do The Smashing Pumpkins, atravessou sem olhar bem em frente nossa van. Representando o centro oeste! Naquela noite, bem depois que todos nós já havíamos entrado, Dave cambaleou depois de ver o Verve (eram dias “pré-The Verve) naquilo que hoje chamaríamos de pop up venue (avenida marcada por lojas temporárias). Ele teria compartilhado um pouco de Xerez (vinho típico da Espanha) com Richard Ashcroft. Como eles eram, Dave? “Rod Stewart se encontra com… Deus.” Amém.

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No entanto, assim que nosso disco foi lançado, a nossa gravadora, uma subsidiária da Elektra, faliu. Nós fizemos o melhor, escrevendo e gravando um material mais agressivo, mas seguiríamos nosso caminho. Ficou marcado como um daqueles vários, vários momentos típicos do Spinal Tap (banda fictícia criada para um filme, lançado em 1984) que toda banda tem. Dave pegou a guitarra e fez alguns registros sob a alcunha de P.S. I Love You, escrevendo o epitáfio perfeito pós-shoegaze “Where The Fuck Is Kevin Shields?”, que achou o seu caminho até a lenda do rádio britânico John Peel, que compartilhou o sentimento ao vestir uma camiseta da gravadora perguntando a mesma coisa. Dave se mudou para Los Angeles, e era notavelmente resiliente com recursos bem limitados e um mercado musical inconstante. Ele se manteve vendendo carros de luxo usados que ele comprava em audições, enquanto encontrava seu colaborador mais consistente, Jonathan Wald, um verdadeiro Detroiter (natural de Detroit) cuja paciência trouxe uma generosidade emocional em Dave e que inspirou canções e cura após o falecimento da mãe de Wald alguns anos atrás. Apesar de estar baseado em L.A., Dave se tornou um “amigo-correspondente” da elite do shoegaze britânico, postando em fóruns e se irritando enquanto encantava-se com eles, principalmente com o baixista do Spacemen 3 e do Spiritualized, Will Carruthers, que acabou viajando até L.A. para gravar o álbum do P.S. I Love You. Entretanto, cada vez mais sua impaciência o fez seu próprio inimigo. Sua saúde mental não era tanto um problema quanto uma compreensão; há muito ele havia se tornado “Stroughter”, o protagonista maior-do-que-a-vida de histórias cada vez menos engraçadas. Ele possuía um olhar mais selvagem nas vezes que passamos juntos em L.A., mas eu coloquei a culpa daquilo na década de distância da insular reafirmação em Detroit. Ainda, éramos uma família. Ele pode ter aparecido em um Mustang conversível barulhento, mas fez questão de mostrar que havia espaço o suficiente para a cadeirinha do meu filho. Poderíamos não estar em contato sempre, mas eu sempre me senti próximo.

PHOTO COURTESY JACK NELSON

Quando Odell compartilhou a notícia do falecimento de Dave, ficamos os dois atordoados. Sabíamos que Dave estava fazendo suas coisas, pareceu para nós, com poucos retornos. Mas sempre compartilhamos a crença de que, não importasse a distância, ele estaria bem. Tempo depois que nos revertemos a vidas mais convencionais, Dave ainda estava lá fora, morando entre casas de hóspedes em Hollywood Hills (bairro nobre de Los Angeles) e no Morrison Hotel, fazendo seja lá o que for para trabalhar, trabalhar, em seus termos, pegando o bom com o ruim.

Por isso que mitificar ele ou sua morte é fazer um grande desserviço ao legado de David Stroughter como um artista ou visionário. Claro, há os fatores de seu falecimento que permanecem distantes, como “pela graça de Deus” e “por quem os sinos dobram”, mas, especialmente nesse clima, eles estão muito, muito pertos. Mas mais do que isso, lembrarei de Dave como viver em um mundo de pura imaginação, mesmo que isso tenha ficado mais hostil. Dave exigiu muito de todos ao seu redor, mas ele também entregou demais. Você cantou o seu blues, David. Por vários razões, mas na maioria, como você cantou e cantou, por amor. Obrigado, irmão. Você conseguiu a sua paz. Brilhe, seu louco e perfeito diamante.

COURTESY JENNIFER JEFFERY